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O descaso dos governos com pescadores artesanais

10-09-2022
Fonte: 

Por Paulo Oliveira e Thomas Bauer | Publicado originalmente no site Meus Sertões | Fotos: Thomas Bauer

Lá no meu interior

Tem uma coisa que não tem nome

Quando eu dou nome à coisa

A coisa some

“Quebradeira de Coco” – Roque Ferreira

 

A música do compositor baiano Roque Ferreira, nascido em Nazaré das Farinhas, a 51 quilômetros do litoral de Saubara, tem tudo a ver com o crime do petróleo. Maior acidente ambiental em extensão ocorrido no Brasil, em 2019.

Primeiro porque os pescadores artesanais dos nove estados do Nordeste e de três da região Sudeste, localizados em mais de 3.000 quilômetros de costa sofrem a consequência da tragédia há três anos. Na época, foram retiradas cinco mil toneladas de petróleo de praias, rios e os manguezais.

Sem apontar os responsáveis e uma versão crível da causa do crime, pelotas de petróleo reaparecerem com frequência nas praias. Na semana passada, novas manchas surgiram na Bahia, Pernambuco, Paraíba e Sergipe. Sem nome e explicação, o problema continua.

Na época do grande derramamento, os pescadores e pescadoras perderam entre 60% e 100% da renda e viram os clientes desaparecerem, temerosos da contaminação do pescado. Há casos de trabalhadores que relatam ter passado fome. Em alguns lugares, a situação persiste.

Para denunciar esta situação e continuar a luta pelo direito de quem sobrevive da pesca artesanal, a campanha Mar de Luta [1] realizou entre os dias 29 e 31 de agosto, em São Cristóvão, Sergipe, o seminário “Três anos de resistência ao crime do petróleo”, do qual participaram pescadores e pescadoras de 12 estados, pesquisadores e ativistas

PRIMEIRO DIA

A primeira mesa do encontro girou em torno da perspectiva da expansão da indústria do petróleo. Flávia Bernardes, educadora da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) no Espírito Santo, iniciou a apresentação dizendo que atualmente há 5.445 poços de petróleo em terra (91,7% do total) e no mar (8,3%). O produto é utilizado nas indústrias plástica, petroleira, de agrotóxicos, armamentista, automobilística, de fertilizantes e até de absorventes.

“Quando a indústria de petróleo chega, ela traz com ela uma série de estruturas que agravam os problemas sociais existentes e criam novas, a partir de violência causada pela chegada de trabalhadores, da interferência no meio ambiente, da supressão de áreas de pesca, expropriação de terra para a construção de portos” – acrescentou.

A representante da ONG acrescentou que o Brasil quer se transformar no quinto maior produtor de petróleo até 2030, o que provocará muitos impactos ambientais, incluindo incalculáveis prejuízos para os territórios tradicionais. Há plataformas a 300 quilômetros da costa, extraindo óleo a 1.500 metros de profundidade.

Segundo a educadora, a indústria petrolífera tem altíssimo risco, pouquíssimo controle e cada vez mais incentivos do governo. Além de ter “tentáculos”, que vão além da Shell, Exxon Mobile, Chevron e Total. A referência é em relação a investidores nacionais e internacionais, bancos e as bancadas ruralista e armamentista.

“Não dá para enfrentá-las sem encarar que é um confronto com o sistema capitalista. De 1900 a 2013, a extração de petróleo aumentou 207 vezes. Em 2021, ela já representa 80% da energia consumida no mundo” – disse.

Flávia disse que no atual governo, foi adotado um neologismo para minimizar os danos causados pelos vazamentos. Eles são chamados de “áreas de escape previstos”, como se fossem controlados, o que não é realidade. A produção atual de petróleo no Brasil é de 3,5 bilhões de barris de petróleo por dia, o equivalente a 556.430.000.000 de litros ou a 222.572 piscinas olímpicas cheias. O pré-sal responde por 75,4% da produção nacional.

A educadora disse que o governo federal, nos últimos anos, criou regras e leis para facilitar a exploração de petróleo e os leilões permanentes. O risco é que as empresas estrangeiras se estabeleçam e depois deixem o país sem arcar com os passivos ambientais e sociais, conforme ocorreu no Equador, onde a Chevron foi condenada, saiu do país e trocou de nome, após pagar uma multa de baixo valor, não reparatória.

Flávia Bernardes mostrou ainda imagens de vazamentos em Linhares, Espírito Santo, causado pela empresa Imetame, em fevereiro deste ano. No site, os responsáveis pelo vazamento se apresentam como “um grupo de empresas com abençoados propósitos e crenças”.  

Por fim, explicou que o Plano de Revitalização das Atividades de Exploração e Produção de Petróleo e Gás Natural em Áreas Terrestres (Reate), apoiado pelo atual presidente da República, visa ampliar a produção de petróleo, avançando sobre os territórios dos pescadores.

“A expansão petroleira faz parte do capitalismo, atropela o modo de vida. Sem enfrentá-la, a gente não vai conseguir frear o ciclo que nos leva à ruptura do metabolismo da terra. Essa indústria é uma das principais causadoras da crise climática e impede a reforma agrária. Ela não permite a soberania dos povos” – afirmou.

O palestrante seguinte foi o pescador artesanal maranhense Manuel Bueno dos Santos, o Nego da Pesca, 62 anos, radicado no Espírito Santo. Presidente da associação de pescadores de Jacaraípe e militante do Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP).

Bueno centrou sua fala nos portos, indispensáveis para a expansão da indústria petrolífera. Ele afirmou que há 11 deles em funcionamento no Espírito Santo, além de 10 empreendimentos licenciados e a previsão de outros sete. Serão 28 portos para 410 quilômetros de costa.

O pescador mostrou imagens de desmatamentos e da poluição causada pelo lançamento de resíduos no mar. Ele ressaltou que a construção do Porto Central, em Presidente Kennedy (ES), será responsável pela supressão de 1.100 hectares de Mata Atlântica. O empreendimento, segundo previsões, deixara 400 famílias de pescadores sem trabalho, além de ameaçar a realização da romaria do Santuário das Neves, que reúne 10 mil pessoas anualmente.

Manuel Bueno alertou para a árdua luta para conter o avanço dos portos e citou casos de contaminação por minério de ferro no estado. O Espírito Santo é o segundo maior produtor de petróleo do país, ficando atrás apenas do Rio de Janeiro.

Ele citou ainda como o ruído e a vibração causados pelas perfurações em alto mar afugentam dourados na época da desova e baleias que procuram águas quentes para reproduzirem. Os licenciadores não levam em consideração, segundo eles, que muitos animais morrem porque ficam atordoados. Oito baleias foram encontradas mortas nos últimos meses.

“Nós, pescadores artesanais, somos um calo no sapato dos empresários e do próprio governo. Nós, por exemplo, denunciamos acidentes que eles querem esconder, como ocorreu no último incêndio em uma plataforma marítima, no qual chegou a morrer funcionário da Petrobras” – contou.

Já o pescador potiguar Armando dos Santos, o Beto, abordou a questão da desativação das plataformas de exploração de petróleo. Segundo ele, três foram desativadas e há previsão de mais sete.

“A Marinha impede a pesca próximo das plataformas fora de operação, alegando que é para prevenir acidentes, incluindo explosões causadas pelo gás acumulado na área dos equipamentos, onde se concentram grandes cardumes. Ou seja, cada vez mais o espaço para pesca está restrito” – pontua.

Alexandre Anderson, presidente da Associação Homens do Mar da Baía de Guanabara (Ahomar), deu início a série de depoimento de pescadores. Ele disse que a situação do Rio de Janeiro é a mesma de todas as demais colônias de pescadores. De acordo com ele, a baía carioca está loteada e os pescadores trabalham entre as sombras de navios e rebocadores.

“A gente faz isso como resistência, a conjuntura piora se nos retirarmos” – declarou.

O presidente da Ahomar disse não acreditar na versão apresentada pelo governo federal que o óleo que vazou em 2019 era de um navio grego.

A representante do Fórum dos Povos e Comunidades Tradicionais de Sergipe, Maria Izaltina, foi incisiva:

 “A gente passa na beira da praia e vê aquelas torres de ferro no mar. Não imaginamos o quanto aquilo ali traz de mal para dentro de nosso território até o momento em que a conta chega para nós. A partir daí, a gente entende o mal que o petróleo faz para nossos territórios, nossas praias, nosso manguezal, nosso pescado, nossa vida e nossa economia”.

A quilombola disse que só a partir da tragédia do derramamento tomou conhecimento da prática de racismo ambiental, quando comunidades tradicionais e carentes são as principais vítimas de tragédias como o crime do petróleo.

Izaltina disse ainda que única região sem exploração de petróleo era a foz do rio São Francisco, mas agora ela está chegando. A ExxonMobil está se instalando no local. Outro problema é o desmatamento do manguezal para a instalação de criações de camarões (carcinicultura).

“Essa luta é nossa

Essa luta é do povo

É só lutando que constrói um Brasil novo

Tem que haver mudança em toda sociedade

É o nosso povo mostrando a realidade”

A música faz parte da luta popular. Foi com uma das letras mais conhecidas pelos movimentos de trabalhadores, sem terra e estudantes, que foi encerrada a primeira parte do seminário. Durante todo o evento, há momentos de alegria e incentivo à resistência. É assim também com a mística que abre cada dia do seminário e com a noite cultural, onde o povo manifesta o contentamento por seguir unido por ideais comuns.

Na parte da tarde, diversos pescadores e ativistas deram depoimentos na roda de conversa. Dentre as mais relevantes estava a de Paulo Sérgio, do Movimento de Pescadores da Bahia e aluno de filosofia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), que relatou os problemas causados por contaminação de chumbo, em Santo Amaro, no Recôncavo Baiano.

A contaminação por metais pesados foi causada pela Companhia Brasileira de Chumbo (Cobrac), subsidiária da empresa francesa Penarroya Oxide S.A, que se instalou na região em 1960 e extraiu chumbo por 33 anos. Ao deixar a cidade, a multinacional deixou um passivo ambiental de milhões de toneladas de rejeitos e 300 mil toneladas de escória (mistura de terra e alta concentração do metal extraído).

Além disso, até hoje ex-trabalhadores da Cobrac e moradores do município sofrem de saturnismo, doença que afina os braços, paralisa as mãos, provoca dores agudas, causa impotência sexual nos homens, aborto e má formação fetal nas mulheres. Paulo comparou a tragédia santamarense com os danos causados pelo derramamento de petróleo.

Outro participante foi Erivan Bezerra, da comunidade de Cotovelo, no litoral sul do Rio Grande do Norte. Além de explicar que muitas plataformas são desativadas durante períodos de baixa do petróleo e voltam a operar quando o mercado fica mais atraente para os investidores, ele chamou a atenção para outra questão: a instalação de parques de energia eólica no mar. Esses empreendimentos restringirão ainda mais o acesso de quem vive da pesca, obrigando os trabalhadores a se deslocarem muito mais longe da costa.

O pescador quilombola Robério, que atua em Barra dos Coqueiros e Pirambu, em Sergipe, disse que a termelétrica Porto de Sergipe, movida a gás natural, e a tubulação que leva o produto retirado do fundo do mar para o navio da Unidade de Armazenamento e Regaseificação do Gás Natural Liquefeito (GNL), ancorado a 6,5 km da costa, e para a usina restringem a área de ação dos pescadores e pescadoras.

“As Centrais Elétricas de Sergipe (Celse) anunciou que seria responsável pelo monitoramento dessa região, onde também ocorre vazamento de petróleo. Isso faz três anos e até hoje os dados oficiais não foram divulgados”.

A segunda mesa do dia reuniu pesquisadores que trataram de diversos aspectos e consequências do derramamento de óleo. Tarcísio Quinamo, da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), apresentou o estudo sobre os impactos socioeconômicos causados pelo derramamento de petróleo no litoral nordestino, em 2019. Na data da apresentação (30 de agosto), o crime do petróleo completou três anos.

O levantamento da Fundaj foi realizado em 40 municípios dos nove estados nordestinos. A responsável pela pesquisa de campo foi a professora Beatriz Mesquita Pedrosa.

Dados da fundação revelam que a pesca artesanal é responsável por mais de 50% da produção pesqueira no Brasil, sendo que no Norte e Nordeste, de acordo com o Ministério da Pesca, havia 1.041.967 pessoas que sobreviviam dessa atividade, em 2012. A partir de 2013, o governo federal deixou de divulgar os dados sobre trabalhadores da pesca.

O vazamento atingiu 3.300 quilômetros de costa entre o Maranhão e o Rio de Janeiro, 130 municípios, 1009 localidades e 57 unidades de conservação. Os estados mais afetados foram Alagoas, Pernambuco, Sergipe e Bahia, de onde foram recolhidas, respectivamente, 2.564, 1.676, 569 e 459,5 toneladas [2]. O total recolhido foi 5.379 toneladas de petróleo.

 Os pesquisadores ouviram 1.999 pescadores artesanais, sendo 1641 homens (82%) e 358 mulheres (18%). A média de idade dos trabalhadores é de 47 anos, apenas 100 (5%) têm entre 16 e 24 anos. A maioria dos entrevistados (87%) se declarou negro ou pardo. Majoritariamente, os peixes e frutos do mar são comercializados e consumidos pelos profissionais da pesca. As mulheres tem nível de escolaridade superior aos homens – 42% estudaram entre 9 e 11 anos e 2,6%, 12 ou mais anos.

A tradicionalidade também é forte neste grupo: 76,4% moram nas comunidades há mais de 30 anos e 71% nasceram nelas. A renda média familiar é de R$ 1.200, sendo que a maioria atua em mar aberto (34,5%) ou tirando alimento de manguezais (31%).

A diminuição do pescado e a queda da demanda, em torno de 70%, foram os principais prejuízos causados pelo crime do petróleo. A queda de renda média nas áreas pesquisadas foi de 38%.

Com relação aos problemas de saúde, das 432 pessoas que tiveram contato com o óleo, principalmente, na limpeza das praias, 43 apresentaram doenças diversas e 17 foram parar em hospitais ou unidades de pronto atendimento. E dos 253 parentes de pescadores, 23 adoeceram e 15 tiveram de ser hospitalizados.

De acordo com a Fundaj, nos últimos 10 anos, o volume de pesca diminuiu 82%. Para isto contribuíram o lançamento de lixo e esgoto no mar, a contaminação das águas por agrotóxicos, a pesca predatória, a poluição industrial, a degradação dos manguezais, o turismo náutico, portos e navios e a produção e vazamento de petróleo.

Fatores apresentados como agravantes, a partir do crime ambiental de 2019: a maioria dos pescadores (76,3%) têm na pesca sua única fonte de renda e a dependência financeira de outras pessoas da família em relação aos pescadores e pescadoras. O estudo recomenda vigilância e monitoramento a longo prazo da saúde dos trabalhadores e seus parentes e que o governo federal volte a produzir estatísticas pesqueiras, suspensas há 10 anos, para subsidiar políticas públicas.

Dois outros relevantes trabalhos foram apresentados. Um deles é “Manchas de sofrimento: enfrentamento das comunidades pesqueiras ao derramamento de petróleo de 2019”, feito pelo professor Miguel Accioly, do Laboratório de Gestão Territorial e Educação Popular da Universidade Federal da Bahia. Trata-se do mapeamento dos danos causados a 72 comunidades pesqueiras, quilombolas e indígenas de seis estados.

As conclusões deste trabalho, assim como a pesquisa que foi coordenada pela professora Rita de Cássia Franco Rêgo, – “Avaliação dos impactos do derramamento do óleo/petróleo na costa da Bahia: ações de saúde e proteção ambiental” – da Faculdade de Medicina da UFBA, serão esmiuçados nos próximos capítulo da série sobre pescadores ambientais, que terá ainda uma reportagem sobre às mulheres dos mar e dos manguezais.

SEGUNDO DIA

 A manhã foi dedicada à roda de diálogos e resistências, na qual pescadores e ativistas de movimentos como as campanhas “Nem um poço (de petróleo) a mais”, Mar de Luta, Projeto Mancha e a comunidade Suape (PE) abordaram diversas questões.

A secretária de Território e Meio Ambiente do CPP, Andrea Rocha, questionou o fato da CPI do Óleo no Congresso Nacional, realizada entre 2019 e 2021, não ter chegado a nenhuma conclusão sobre o vazamento de petróleo e os constantes surgimentos de petróleo, como o ocorrido em Itacimirim (BA), em junho do ano passado.

Os pescadores reivindicam investigação aprofundada para solucionar o caso e identificar os responsáveis pelo derramamento de óleo, a implantação de um monitoramento rigoroso em praias, mangues e da costa pesqueira, mudanças da política ambiental em vigor, a proibição da abertura de novos poços em alto mar.

Tainá Oliveira Pinto, presidente da Colônia de Pescadores da Barra de Santo Antônio, em Alagoas, deu detalhes dos danos à saúde causados em sua comunidade. Ex-bolsista dos projetos Manchas de Sofrimento e Costa dos Corais, ela disse que muitas pessoas passaram fome e continuaram a trabalhar mesmo com a suspeita de contaminação do pescado. Tainá, filha de pescadores, relatou o caso e apresentou Renilda Maria de Oliveira, 62 anos, que teve os braços e pernas queimadas ao tentar retirar o óleo do litoral de Passo de Camaragibe, em Alagoas. A história dessa marisqueira será contada no capítulo sobre mulheres do mar e do mangue, na próxima semana.

A marisqueira Geonésia, conhecida como Nice, acrescentou que os donos de viveiros de criação de camarões (carcinicultores) na região que engloba as cidades de Estância, Indiaroba. Brejo Grande e Neópolis, são responsáveis por desmatar e eliminar os peixes.

“Nós os chamamos de ‘cacimorte’” – disse.

Nice relatou ameaça de morte por parte dos criadores de camarão. Uma delas contou que foi abordada por um carcinicultor, que disparou: “A senhora tem amor à vida?”. E ela retrucou que “ricos também morrem”.

O presidente da colônia Z-8, em Cabo de Santo Agostinho, Pernambuco, Lailson Evangelista de Souza, pediu para o pescador Edílson, da colônia Tamandaré contar o drama que vivenciou no período do desastre ecológico. Leia a entrevista com o pescador, clicando aqui. 

Além dos dramas pessoais, os dois palestrantes assinalaram os seguintes pontos:

Seiscentas toneladas de petróleo foram retiradas entre a praia e a boca do mangue.

Por ser muito procurada por turistas, a praia de Porto da Galinhas teve uma mobilização maior e foi liberada para banho em três dias, ainda com óleo.

A praia de Guaibu recebeu duas toneladas de petróleo e até hoje tem óleo grudado nas pedras.

O Cabo de Santo Agostinho foi a área mais atingida.

A praia de Boa Viagem, cartão-postal do estado, não foi contaminada por que o petróleo foi interceptado em alto mar.

Depoimentos relatando problemas semelhantes vivenciados no Rio de Janeiro e a questão da vazão controlada por hidrelétricas no rio São Francisco foram apresentadas por outros participantes como exemplo de fatos que prejudicam a atividade.

Coube a Laurineide Santana, agente pastoral do CPP, a encerrar a apresentação. Ela citou o educador Paulo Freire e incentivou o grupo a “esperançar”. Comparou a luta dos pescadores com o enfrentamento a um monstro e instou os participantes a votarem contra o atual presidente.

Antes do trabalho em grupo para definição de estratégias comuns de luta e resistência, foi realizada um painel sobre questões jurídicas relacionadas ao crime do petróleo. A assessora jurídica do CPP, Erina Gomes, filha de pescadores de uma comunidade paraense, falou sobre as diversas violações cometidas. Dentre elas se destacam a ausência de uma política efetiva de reconhecimento dos direitos dos pescadores; a falta de informações e a negação de direito; e a inexistência de políticas públicas nas áreas de saúde, trabalho e seguridade para atender as pessoas atingidas.

Mais quatro aspectos foram citados pela advogada: o desmonte intencional das estruturas de governo pelo atual presidente da República; a não transferência do auxílio emergencial previsto; a falta de reparação pelos danos causados; e uma política de governo propositalmente defasada.

Erina citou que há cinco ações civis impetradas pelo Ministério Público Federal nos estados de Pernambuco, Rio Grande do Norte, Sergipe, Alagoas e Maranhão, reivindicando medidas emergenciais. Outra ação visa a inclusão dos excluídos pela Medida Provisória 908, que previa o pagamento de duas parcelas no valor de R$ 1.996 para pescadores artesanais inscritos no Registro Geral da Atividade Pesqueira.

A assessora também alertou para o fato de que tramita na Câmara dos Deputados, em Brasília, projeto que pretende desobrigar o Brasil a cumprir à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante aos indígenas, quilombolas e povos e comunidades tradicionais diversos direitos, inclusive o de fazer consultas prévias.

Segundo nota técnica da organização Terra dos Direitos, que atua na defesa de direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais, ao deixar de ratificar o acordo assinado por 23 países, haverá retrocessos nas questões ligadas aos direitos humanos dos povos originários e tradicionais. A aprovação facilitará o avanço sobre os territórios e modos de vida das comunidades. Outros projetos em tramitação simplificam a concessão de licenciamentos ambientais.

TERCEIRO DIA

A audiência pública, realizada na manhã do dia 31 de agosto, contou com a participação de dois deputados federais, um pesquisador e integrantes dos movimentos de pesca artesanal. A sessão foi aberta por Maria Pereira do Vale, a Maninha, da Articulação Nacional dos Pescadores. Ela ressaltou que as mulheres foram as mais atingidas pelo crime do petróleo, pois muitas tiveram problemas psicológicos e/ou ficaram mais dependentes dos companheiros ou de amigos. Maninha também questionou porque a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que apurava o derramamento de óleo no litoral foi encerrada, sem chegar a nenhuma conclusão

Raimundo Siri, do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais reclamou da demora para a entrega de equipamentos de proteção individual para quem estava limpando as praias. Ele contou que os representantes do governo, que chegaram dias depois do óleo sujar praias e manguezais, exigiram o cadastramento dos pescadores socorristas.

“Somos cerca de um milhão de pescadores e pescadoras registrados. Existem muito mais pessoas sobrevivendo da pesca, mas o governo deu as costas para nós, que colocamos 70% do pescado consumido no país na mesa dos brasileiros” – afirmou.

A agente pastoral do CPP Nordeste Laurineide Santana ressaltou que o crime ambiental foi ignorado pelos governos federal e dos estados. Ela classificou o ocorrido como “uma irresponsabilidade com a natureza, a biodiversidade e com a vida das pessoas que tiram o sustento da pesca e protestou contra a decisão de engavetamento da CPI, sem que se chegasse aos responsáveis e às causas do vazamento.

“É como se no Brasil não existisse as comunidades tradicionais pesqueiras. O governo invisibilizou esses homens e mulheres. Isso dói. Dói na alma. Quem viveu na prática sabe realmente o que foi mergulhar dentro daquele petróleo. O que foi feito na tentativa de salvar o território e as vidas de nosso povo?” – declarou.

Laurineide lamentou ainda que o governo autorizou a instalação da ExxonMobil em Sergipe, pouco depois da tragédia ambiental de 2019

“O Estado mais uma vez usou todas artimanhas para aprovar, através de uma audiência pública forjada, a autorização para a Exxon explorar petróleo. Não adianta ter técnicos sérios, que fazem avaliações corretas, porque os gritos da natureza e das populações tradicionais não são ouvidos. A gente tem que gritar que não aceita isso.” – disse.

Duas pessoas participaram remotamente da audiência. O primeiro foi professor Cristiano Ramalho, do  Núcleo de Estudos Humanidades, Mares e Rios (Nuhumar) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Ele relacionou uma série de problemas constatados a partir do episódio de 2019.

Impacto na renda dos pescadores – Segundo ele, nos três meses subsequentes ao vazamento, a economia pesqueira colapsou. E entre outubro de 2019 e julho de 2020, a redução de venda de pescado variou de 60% a 80%. O professor ressalvou que o impacto na renda nas mulheres foi gravíssimo, pois elas perderam entre 90% e 100% da renda.

As mulheres também sofreram com o aumento da violência doméstica e com o registro de muitos casos de problemas psicológicos e depressão.

A trágica combinação derramamento de petróleo e Covid-19 potencializou ainda mais os impactos gerados pelo descaso do governo Bolsonaro. Além disso, a morte das pessoas mais velhas durante a pandemia acelerou o abandono da atividade por conta dos mais jovens e impactará geracionalmente a formação de novos profissionais.

Setenta por cento das pessoas entrevistadas nas colônias de pescadores são negras e pardas. O descaso com as vítimas caracteriza a existência de racismo ambiental, aliado à injustiça social.

A ausência sistemática de providência por parte de governos supostamente progressistas nos estados e municípios agravaram a situação. Os governantes se omitiram em questões como o acompanhamento da saúde dos pescadores e pescadoras e o monitoramento das praias e mangues – neste caso o resultado é o reaparecimento de manchas de petróleo na costa nordestina nos últimos dias.

É importante preservar a memória do acontecimento na luta para evitar a repetição de fatos danosos. “Através do voto podemos apagar as marcas deletérias deixadas do atual governo” – finalizou.

O deputado Rodrigo Agostinho (PSB-SP), integrante da Comissão de Meio Ambiente da Câmara dos Deputados e advogado ambientalista, disse que a CPI foi interrompida porque o governo federal percebeu que poderia ser responsabilizado pelo crime e pressionou os parlamentares para que a apuração não desse resultado.

Agostinho relacionou fatores que demonstram o despreparo do Brasil para enfrentar acidentes ecológicos, crimes ambientais e evitar a entrada de embarcações estrangeiras

“Os satélites brasileiros estão voltados para a terra. Nenhum deles monitora o mar territorial[3]. Embarcações estrangeiras fazem a limpa com a pesca de arrasto. Os navios não são monitorados. A Marinha e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) não possuem estrutura para fazer a limpeza das áreas atingidas” – pontuou.

A Comissão de Meio Ambiente ainda não fez o relatório sobre o crime do petróleo. O atraso é justificado pela decretação de sigilo do material arquivado.

“O Brasil precisa saber como lidar com isso. A supervalorização do petróleo e o abandono de estruturas de exploração em alto mar vão gerar cada vez mais acidentes” – alertou Agostinho.

O também deputado João Daniel (PT-SE), da Comissão Externa de Derramamento de Óleo no Brasil, esclareceu que o travamento da CPI não encerrou os trabalhos do grupo que ele coordena. Na prestação de contas ao público, ele lamentou a transferência do procurador do Ministério Público Federal (MPF) que cuidava do caso. Com isso, as notificações, audiências e apurações foram interrompidas até que seja nomeado um substituto. Aliás, o MPF, assim como a Defensoria Pública da União, não enviou representante para a audiência.

“São raros os procuradores, procuradoras e representantes da Polícia Federal que atuam firmemente quando se trata de crimes cometidos contra a natureza e contra os pobres. É uma política determinada e deliberada por esse governo que está aí” – afirmou.

O parlamentar contou que a Comissão Externa ouviu representantes da Marinha, do Ibama, dos ministérios das Minas e Energia e da Saúde, além de realizar diligências em áreas atingidas pelo óleo e receber denúncias sobre prováveis causas da tragédia ambiental. A partir disso, foi elaborada proposta legislativa para tratar da prevenção de acidentes ou poluição de petróleo nos mares. Ele não esclareceu  como está o andamento da proposição.

João Daniel fez observações com relação aos trabalhos da comissão. Segundo ele, infelizmente, todos os representantes de órgãos do governo e ministérios vão para as audiências orientados pelo governo federal.

“A ação é clara. Todos dão caráter ideológico ao derramamento para tentar distanciar as informações reais. Nós não sentimos, em nenhum momento, interesse do governo em apurar profundamente o caso” – acusou.

Daniel relatou que a concessão de um auxílio urgente para os pescadores e pescadoras só foi aprovada quando o presidente deixou o país e o presidente do Senado o substituiu temporariamente. Ele falou ainda se o governo quisesse já teria solucionado o crime do petróleo.

“O governo federal tem um sistema para monitorar os navios em alto mar. Todos os navios, sem exceção. Ele tem como saber qual foi a embarcação e onde um acidente foi causado” –  revelou.

Ao final da fala, o parlamentar pediu autorização para incluir todas as informações e relatos feitos durante o seminário no relatório da Comissão que preside. Após as apresentações, os participantes ouviram depoimentos e reivindicações da plateia.

O seminário foi encerrado com passeata e ato público em Aracaju. Representantes de 12 estados partiram da orla do Bairro Industrial ao centro. No trajeto, eles denunciaram o descaso do governo na apuração do chamado “crime do petróleo”.

Até hoje não há informação sobre os verdadeiros responsáveis. A versão de que um navio grego derramou o óleo é contestada por pesquisadores, pescadores e organizações não governamentais. Denunciaram ainda que não foram pagas indenizações nem feitas reparações para os trabalhadores prejudicados.

Vários manifestantes participaram do ato enrolados em plásticos pretos, representando a impregnação de petróleo que causou danos físicos e psicológicos.  Os  governos federal, estaduais e municipais se omitiram e não deram apoio ao povo do mar e das águas.

Veja como foi a manifestação no vídeo abaixo:

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[1] O Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP), Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP) e a Articulação Nacional das Pescadoras (ANP), dentre outras organizações, fazem parte da campanha Mar de Luta.

[2] Uma tonelada equivale a mil quilos.

[3] O Brasil controla, oficialmente, um território marítimo de 3,6 milhões de km2 – área maior do que as regiões Nordeste, Sudeste e Sul juntas.

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(*) Esta série foi produzida por Meus Sertões em parceria com o Conselho Pastoral dos Pescadores (CPP).

 

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