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Carta Aberta repudia decisão judicial contra a construção de casas em Rio dos Macacos

Tipo de publicação: 
Comunidade Rio dos Macacos

 

Em decisão do Desembargador Federal Daniel Paes, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, é negado o pedido para construção e reforma de casas, num episódio que é apenas o mais recente da serie de violações e abusos sofridos pela comunidade Quilombola Rio dos Macacos, localizada em Simões Filho (BA). Na Carta assinada por várias organizações, o Estado brasileiro é acusado de Racismo Institucional.

Confira a Carta na íntegra! 

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Carta Aberta em Repúdio ao Racismo Institucional dos Poderes Públicos contra a Comunidade Quilombola Rio dos Macacos

 

No dia 30/08/18, foi publicada decisão do Desembargador Federal Daniel Paes, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, negando o pedido de autorização para as reformas e construção de casas no Quilombo Rio dos Macacos. Argumentando, em resumo, que o Ministério Público Federal não teria legitimidade para representar os/as quilombolas no processo, a decisão omite que o mesmo pedido foi feito pela Defensoria Pública da União, que advoga para as/os quilombolas rés e réus nas ações, movidas pela Marinha do Brasil para expulsa-los do seu território ancestral.

O drama vivenciado pela comunidade teve início nos anos 50, com a invasão da Marinha ao território quilombola para a construção da barragem no rio que dá nome à comunidade e, já nos anos 70, com a instalação da Vila Naval, que só agravou o processo de expulsões, destruição de templos religiosos, agressões, mortes, violência física, sexual e psicológica infligido às/aos quilombolas, em pleno regime ditatorial. Mas só no ano de 2009, o racismo e a violência da Marinha se tornaram públicos, quando numa cruel inversão dos valores jurídicos em disputa, a União entra com ações reivindicatórias em nome do 2º Distrito Naval de Aratu acusando a comunidade quilombola de invasora de área militar estratégica para a segurança nacional e causadora de danos ambientais.

A força de resistência e reação da comunidade conseguiu a elaboração de relatório antropológico pelo Incra, iniciando o processo para a titulação do território e revelando a farsa intentada pela Marinha no Judiciário, revelando a verdadeira responsável por danos ambientais, além de tornar pública a história de pessoas centenárias nascidas no quilombo, cujas famílias desde a chegada da Força Armada vinha enfrentando em silêncio violações ao seu direito à saúde, educação, liberdade religiosa, moradia digna, além do não acesso às políticas públicas de água, saneamento, energia etc.

O juiz Evandro Reimão, da 10ª Vara Federal da Bahia, concedeu decisão liminar, negou a identidade quilombola, para não admitir o ingresso da Fundação Cultural Palmares, do Incra, nem da própria associação do quilombo nas ações judiciais, proibiu, em decisão cujos efeitos duram até hoje, qualquer reforma ou construção das moradias em risco de desabamento no quilombo e sentenciou as ações em favor da expulsão à comunidade. Apenas a desobediência civil impediu por 3 vezes seu despejo, com amparo no direito constitucional ao território tradicional, forçando o governo federal à negociação após a identificação pelo Incra de um território de 301 hectares.

Com o fracasso das rodadas de negociação, Defensoria Pública da União e Ministério Público Federal conseguiram que a justiça obrigasse o Incra a publicar o relatório antropológico da comunidade. Porém, ignorando a única decisão judicial favorável à comunidade até hoje, foi feito um acordo entre órgãos do governo federal para reconhecer os 301ha, mas titular apenas um território descontínuo de 104 hectares, removendo fontes de água, moradores e áreas agricultáveis do território tradicional.

A face do racismo passa a se manifestar então na forma de uma escancarada chantagem governamental, para obrigar a comunidade a desistir do uso compartilhado da barragem construída no seu rio, aceitando a titulação dos 2/3 do território que lhes foi ilegalmente destinado, com a construção de muros cercando as fontes de água. O pedido da União de autorização na justiça apenas para a construção de estradas para acesso ao quilombo e de muros separando a Vila Militar e as águas do Rio dos Macacos do território quilombola – mas não para a reforma e construção das casas – revela a intenção de isolar a comunidade, usando do direito à titulação e políticas públicas básicas enquanto moeda de troca para tanto.

Ao ser impedida de iniciar a construção do muro em redor da barragem, a Marinha ordena a interrupção da construção das vias independentes já iniciada pelo Exército e a proibição da entrada de qualquer política pública ao território. A Secretaria de Promoção da Igualdade do Governo da Bahia cede à mesma chantagem, com o valor de R$ 8 milhões para obras de moradia digna, água e saneamento paralisado há mais de 2 anos, alegando que as obras só poderão começar após a titulação do território, algo que nunca impediu a chegada de políticas públicas a outros territórios quilombolas.

Ainda assim, a comunidade conseguiu a aprovação da construção de 42 casas pelo Programa Nacional de Habitação Rural da Caixa Econômica Federal. Mas a Marinha vem impedindo a Prefeitura do Município de Simões Filho de concluir a melhoria de uma via independente que permitiria a entrada dos materiais de construção por fora da Vila Naval, acessando o quilombo pela Estrada do Areal, área de propriedade do governo do estado. A interrupção das obras pela prefeitura levou a um protesto, que foi violentamente reprimido por policiais militares e, assim que publicada a decisão do Tribunal, a Marinha proibiu a continuidade das obras pela, num ato típico de regime de exceção, intervindo em obras públicas fora da área militar, sobrepondo o racismo à segurança das famílias e pondo vidas humanas negras em risco.

Não há qualquer risco à segurança ou ao meio ambiente, nem mesmo possibilidade de rompimento da barragem, como alega a decisão. São processos que já perderam o objeto desde o reconhecimento oficial da existência do quilombo. Não reconhecer a urgência e risco às vidas quilombolas é se alinhar à chantagem imposta à comunidade, demonstrando que para os poderes públicos vidas negras são descartáveis, podendo ser soterradas sob os escombros da propalada democracia racial tão apregoada por quem observa de seus gabinetes refrigerados a tragédia social dos 9 assassinatos de quilombolas no Estado da Bahia no ano de 2017, em razão de conflitos fundiários.

Repudiamos, assim, o tratamento racista que vem sendo dado às famílias do Quilombo Rio dos Macacos ao longo de décadas e exigimos em reparação aos crimes cometidos pelo Estado brasileiro e pelas Forças Armadas contra esta comunidade ancestral:

1) A imediata revogação da decisão proibindo a reforma e reconstrução dos imóveis em vias de desabamento no quilombo e a retirada do ilegal embargo da Marinha às obras de melhoria da Estrada do Areal;

2) A extinção das ações judiciais com sentenças contrárias às/aos quilombolas pela perda do seu objeto, vez que não mais se cogita da sua expulsão do território tradicional;

3) A retomada pelo Exército da construção das vias de acesso ao quilombo independentes da passagem pelo interior da Vila Naval;

4) A execução do orçamento destinado ao implemento de políticas públicas de fornecimento de água, saneamento e demais moradias no território quilombola;

5) A revisão dos limites do território para a inclusão das fontes e sítios sagrados do território quilombolas

6) O compartilhamento dos diversos usos das águas da barragem no Rio dos Macacos;

7) A imediata titulação pela Incra dos 104 hectares destinados pela Portaria nº 623, de 16 de novembro de 2015 do Incra ao Quilombo Rio dos Macacos.

Assinam:

Artigo 19

Associação de Advogados/as de Trabalhadores/as Rurais no Estado da Bahia – AATR

Associação de Pescadores/as Artesanais de Conceição de Salinas

Associação dos Remanescentes do Quilombo Rio dos Macacos

Associação Nacional de Ação Indigenista - ANAÍ

Centro de Defesa dos Direitos Humanos da Serra - CDDH

Centro de Defesa dos Direitos Humanos Dom Tomás Balduíno

Comissão Pastoral da Terra – CPT

Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos - CBDDH

Conselho Indigenista Missionário – Cimi

Conselho Pastoral dos/as Pescadores/as - CPP

Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas -CONAQ

Frente Povo Sem Medo/BA

Grupo Costeiros da Universidade Federal do Estado da Bahia – UFBA

Grupo de Pesquisa GeografAR – Geografia dos Assentamentos na Área Rural - POSGEO/UFBA/CNPq

Grupo de Pesquisas Memórias, Processos Identitários e Territorialidades no Recôncavo da Bahia - MITO/UFRB

Justiça Global

Koinonia Presença Ecumênica

Laboratório de Pesquisa em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento do Museu Nacional – LACED/UFRJ

Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST

Movimento Nacional de Direitos Humanos

NEA Nova Cartografia Social / Universidade Federal do Recôncavo Baiano – UFRB

Programa de Pesquisas sobre Povos Indígenas do Nordeste Brasileiro - PINEB/UFBA

Rede Nacional de Advogados/as Populares - Renap

Rede Nacional de Advogados/as Populares - Renap/BA

Sociedade Brasileira de Ecologia Humana – SABEH

Sociedade Maranhense de Direitos Humanos

Terra de Direitos