Em audiência pública na Câmara, pescadores e pescadoras artesanais denunciam ameaças do Decreto 12.527/2025, da MP 1.303/2025 e do Plano Espacial Marítimo, cobrando participação nas decisões que afetam territórios, renda e modos de vida
Texto: Henrique Cavalheiro - Assessoria de Comunicação do CPP | Fotos: Flávia Quirino - Comunicação do MPP e Kayo Magalhães/Câmara dos Deputados
Representantes de comunidades pesqueiras de várias regiões do país participaram nesta quinta-feira (14) de audiência pública na Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados para discutir o Decreto 12.527/2025, a Medida Provisória 1.303/2025 e o Plano Espacial Marítimo. A reunião, requerida pelo deputado João Daniel (PT-SE), foi resultado da mobilização de pescadores e pescadoras artesanais, que reivindicam protagonismo nas decisões que impactam diretamente seus territórios, modos de vida e direitos, reunindo lideranças do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais do Brasil (MPP), da Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas (Confrem) e do Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP), além de representantes de órgãos do governo federal.
O Decreto 12.527/2025 transfere para as prefeituras a homologação do Registro Geral da Atividade Pesqueira (RGP), etapa necessária para o acesso ao seguro-defeso. Essa mudança é vista como um grave risco para a pesca artesanal, pois muitos municípios não possuem estrutura técnica adequada e, em diversos casos, já atuaram como agentes de violação de direitos dessas comunidades, abrindo margem para uso político da concessão. Já a Medida Provisória 1.303/2025, em seu artigo 71, também trata do seguro-defeso, condicionando a liberação do benefício à homologação municipal do RGP e limitando o pagamento à dotação orçamentária prevista no início do ano. Isso pode deixar pescadores sem acesso ao benefício mesmo cumprindo os requisitos legais, comprometendo sua renda e forçando a pesca durante o defeso. O Plano Espacial Marítimo (PEM), por sua vez, organiza o uso e ocupação do espaço marinho brasileiro, definindo áreas prioritárias para diferentes atividades econômicas. O processo de discussão e elaboração desse plano deve oportunizar a presença das comunidades pesqueiras não apenas como ouvintes, mas também como protagonistas, garantindo participação efetiva e ativa.
Impactos e resistência das comunidades pesqueiras
A militante do MPP, Arlene Costa, de Sergipe, alertou para os efeitos do Decreto 12.527/2025 e da MP 1.303/2025 sobre a pesca artesanal, especialmente para as mulheres pescadoras e marisqueiras. “Os impactos vêm primeiro com a deslegitimação de nós, que somos entidade, passando a dar direito à prefeitura para fazer a homologação de carteira de pescador. Pra isso existe o Ministério da Pesca, as confederações, as colônias, as associações, as entidades representativas”, afirmou. Segundo ela, a transferência dessa atribuição para os municípios representa descaso público e abre margem para retiradas de direitos históricos. Arlene também criticou as exigências burocráticas que dificultam o acesso ao seguro-defeso e outros benefícios, afetando pescadores e pescadoras de todo o país: “Eles ficam procurando o mínimo detalhe para tirar o direito do pescador, sabendo que eles são pescadores há mais de trinta, quarenta, sessenta anos”, denunciou. Para a liderança, a defesa dos direitos exige participação ativa das comunidades nas decisões que afetam seus territórios: “Nada de nós sem nós”, disse Arlene.
O pescador e militante do MPP, Florivaldo Mota Rocha afirmou que o Decreto 12.527/2025 e a MP 1.303/2025 “vêm ferir diretamente os direitos dos pescadores e pescadoras artesanais do Brasil, principalmente no que se trata do seguro-defeso”, denunciou. Ele criticou a transferência da homologação do RGP para as prefeituras, “prejudicial à nossa classe” por falta de estrutura e risco de uso político, e a mudança no pagamento do benefício, que passaria a depender da dotação orçamentária: “Está dizendo: se eu tiver dinheiro, eu pago, se eu não tiver, eu não pago”, alertou Florivaldo. Rocha também apontou problemas na exigência da Carteira de Identidade Nacional, diante da falta de capacidade dos estados para emitir o documento, e fez um apelo direto: “A gente pede aos deputados, às deputadas, àqueles que entendem que essa classe é importante, a retirada, a supressão do artigo 71, e também a retirada da exigência da carteira nacional, que possa ser um outro documento comprobatório, com foto, como era antes”, disse o pescador.
O representante da Confrem, Alberto Catanhede Lopes, reforçou que a presença das comunidades pesqueiras não pode se limitar à audiência pública na questão do PEM. “A nossa participação não pode, não deve e nem vai se restringir a esta audiência pública. A gente quer participar do processo daqui pra frente”, afirmou. Ele destacou que atividades como pesca artesanal, pesca esportiva, aquicultura e turismo dependem de um ambiente saudável, ao contrário de empreendimentos como mineração e exploração de petróleo, que “não dependem do ambiente saudável” e podem gerar impactos amplos e duradouros. Para Alberto, é essencial que a pesca artesanal tenha espaço real nas discussões: “Nós precisamos ter o processo na mão, precisamos ter ambiente e espaços com condições de igualdade para o debate. Vamos dizer ‘mas a pesca artesanal não chega no alto-mar’. Tá, mas o problema do alto-mar vem para a pesca artesanal. Nós temos doutores no meio dos pescadores, dos faxinais, dos indígenas, dos quilombolas. O que nós precisamos é do espaço democrático e de direito que merecemos”, afirmou Catanhede.
Seguro-defeso é direito, não favor
Para secretário executivo CPP, Gilberto Lima, a MP 1.303/2025 ameaça direitos históricos da pesca artesanal. “O seguro defeso não é um favor dos governos. É um direito e não um favor”, afirmou, destacando que a exigência de homologação do RGP pelas prefeituras “parece simples no papel”, mas ignora a realidade de que como é imaginado “aproximadamente 80% das cidades brasileiras não têm capacidade técnica nem equipe para fazer esse processo”, ressaltou. Ele alertou ainda que a vinculação do pagamento ao orçamento anual pode deixar milhares de pescadores e pescadoras sem receber. “Se faltar recurso, como é que esses milhares e milhares de pescadores e pescadoras vão ficar relacionados ao seu próprio direito?”, questionou. Para Gilberto, é obrigação do Ministério da Pesca e Aquicultura “garantir o RGP para todos os pescadores e pescadoras e defender o pescador artesanal do Brasil”, afirmou Lima, além de exigir que a Casa Civil e a Secretaria de Relações Institucionais atuem para corrigir a medida e que “o Ministério da Fazenda pare de tentar equilibrar as contas do governo tirando o direito dos pescadores e pescadoras”, concluiu.
Na contramão do que pensa os povos das águas
Contrariando o posicionamento de pescadores e pescadoras artesanais que vivem nos municípios e conhecem a realidade do contato com o poder executivo local, realidade que, segundo o Relatório de Conflitos do CPP, demonstra que o próprio executivo municipal é agente causador de conflito em 55,1% dos casos, ou seja, está entre os principais causadores de violações de direitos em comunidades pesqueiras.
Já para a secretária nacional de Registro, Monitoramento e Pesquisa do Ministério da Pesca e Aquicultura, Carolina Rodrigues da Costa Doria, a transferência da homologação do RGP para as prefeituras é o melhor caminho. “Os municípios estão mais próximos do pescador, conhecem a realidade local e têm contato direto com quem exerce atividade no seu dia a dia. A homologação municipal não é um obstáculo, é um instrumento de confirmação de que aquela pessoa é de fato aquela pessoa, que é um pescador, que é uma pescadora profissional, que vive da atividade pesqueira, que exerce atividade de forma regular e não ininterrupta na sua comunidade”, afirmou.
Ela acrescentou que o governo pretende criar “orientações técnicas, prazos razoáveis e canais de apoio” para que o processo seja “simples, seguro e justo”, com o objetivo de “distinguir com clareza quem exerce atividade profissionalmente daqueles cadastrados meramente formais e não criar barreiras injustas para quem vive da pesca”, disse Carolina.
Participação efetiva no Plano Espacial Marinho
Ao falar sobre o PEM, o coordenador-geral de Gerenciamento Costeiro e Marinho Integrado do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, João Luiz Nicolodi, reforçou que o processo ainda está em construção e que a participação social qualificada é um dos pilares da iniciativa. “Uma das questões, dos pilares, é essa questão da participação social, efetiva e qualificada, e não só ‘pra bonito’, como se diz”, afirmou.
“É ruim com o PEM? Muito pior sem ele. O PEM é uma oportunidade de organizarmos o uso do espaço marítimo no Brasil. E se não houver uma ferramenta que organize isso, a gente sabe como vai acontecer: quem pode mais, chora menos; os setores mais fortes vão engolir os setores mais fracos”, salientou João. Segundo ele, o Ministério do Meio Ambiente apoia que a pesca artesanal tenha assento no comitê executivo do PEM, destacando que “não se discute a importância dessa participação, que ela seja igualitária". Nós queremos que exista realmente essa paridade, para que as coisas efetivamente funcionem, e não seja mais daqueles planejamentos que no final das contas não vão ter efetividade lá na frente”, finalizou.
Ao concluir a audiência, o deputado João Daniel (PT-SE) agradeceu a presença dos pescadores, pescadoras, entidades e representantes do governo, ressaltando a importância de transformar as discussões em ações concretas. “Quero solicitar a todas as lideranças que organizem um documento para que a gente possa protocolar, cobrar e também fazer uso da palavra na tribuna, em defesa dos pescadores e pescadoras artesanais do Brasil”, afirmou.