Iniciativa apoiada pelo CPP reuniu cerca de 150 mulheres do litoral ao sertão para expor violações em saúde, previdência, território e trabalho. Documento final será entregue às autoridades
Texto: Henrique Cavalheiro - assessoria de comunicação do CPP | Fotos: Severino dos Santos - CPP Nordeste 2
Na quinta-feira (24), cerca de 150 mulheres pescadoras e marisqueiras de diversas regiões de Pernambuco se reuniram para a realização do Tribunal Popular das Mulheres das Águas, no Recife. A atividade, construída ao longo de um ano com apoio do Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP), SOS Corpo, FASE, e os mandatos das deputadas estaduais Dani Portela (PSOL) e Rosa Amorim (PT), teve como objetivo denunciar violações de direitos enfrentadas pelas trabalhadoras das águas e fortalecer a lu ta por reconhecimento e justiça.
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Inspirado na metodologia dos tribunais populares, o espaço foi criado para dar visibilidade às violações de direitos humanos sofridas pelas mulheres das comunidades tradicionais pesqueiras, julgando simbolicamente as práticas e omissões do Estado e dos agentes econômicos que impactam suas vidas, seus corpos e seus territórios. Através de denúncias públicas e da produção de uma sentença simbólica, o Tribunal busca fortalecer a luta por justiça social, direito à saúde, previdência, território e reconhecimento da pesca artesanal como modo de vida.
Problemas na saúde e no atendimento público
As mulheres relataram que enfrentam diversas doenças associadas às atividades de pesca e mariscagem, mas que essas enfermidades não são reconhecidas como doenças ocupacionais pelo sistema público de saúde. "Nós temos várias espécies de doenças que não são reconhecidas. Não temos uma política pública direcionada diretamente para a nossa saúde", afirmaram no documento final do Tribunal. Segundo as pescadoras, a falta de conhecimento dos médicos sobre as especificidades do trabalho nas águas leva ao tratamento descontextualizado dos problemas de saúde, como se fossem doenças comuns, desconectadas da relação com o ambiente de trabalho e o território.
Elas destacaram que, apesar dos cursos realizados e das demandas encaminhadas à Fiocruz e ao Ministério da Saúde, "não vemos nenhuma resposta concreta". A ausência de equipamentos de proteção individual (EPIs) também foi apontada como agravante:
"Cada dia está ficando mais difícil, estamos ficando mais doentes, mais desgastadas, desanimadas e não sabemos o que fazer", denunciaram.
Além dos impactos físicos, o documento ressaltou o agravamento da saúde mental das pescadoras e de suas famílias, consequência da falta de cuidado, da desumanização no atendimento e do racismo institucional nos serviços públicos. A retirada das comunidades de seus territórios e a violência racial sofrida no acesso às políticas públicas têm provocado ansiedade, depressão e, em casos extremos, risco de suicídio e morte.
Direitos previdenciários, a robotização do atendimento
Segundo os relatos, o INSS tem negado aposentadorias, auxílios e benefícios de maneira sistemática e injusta, sem apresentar justificativas claras. "Hoje o INSS está de uma forma que a gente não tem nem como saber o porquê as aposentadorias são negadas", afirmaram. Os pedidos de benefício são analisados automaticamente por robôs, sem avaliação humana, e em poucos minutos as negativas são emitidas, "sem nenhuma documentação, sem nenhuma explicação", denunciaram. Em alguns casos, o motivo alegado foi a ausência de recebimento de seguro-defeso — mesmo em áreas onde esse benefício não existe. A robotização do atendimento, segundo as pescadoras, tem aprofundado as desigualdades e ampliado as injustiças.
O Tribunal também ouviu relatos sobre as humilhações sofridas nas perícias presenciais e nas inspeções domiciliares exigidas pela Justiça para comprovação da atividade pesqueira.
"Eles olham tudo: abrem geladeira, armário, olham até os móveis e as mãos da gente. Parece que o pescador e a pescadora têm que ser miseráveis para provar que trabalham", desabafou uma das mulheres, emocionada.
A prática de inspecionar fisicamente o corpo, os pertences e a casa das pescadoras foi denunciada como invasiva e desrespeitosa. "A pescadora chegou na Colônia praticamente chorando. Disse que aquilo foi uma humilhação muito grande. E é mesmo", afirmaram durante a plenária.
Além disso, as trabalhadoras denunciaram que os auxílios-doença, agora chamados de benefícios por incapacidade temporária, são concedidos de maneira precária. "A gente dá entrada, a resposta demora meses e quando sai, não vem nem a data para o pagamento", relataram. Muitas pescadoras recebem a resposta do benefício já fora do prazo necessário para garantir seu sustento. O tribunal popular destacou ainda que o uso de inteligência artificial no atendimento do INSS, sem preparação adequada, reproduz práticas sexistas e racistas, invisibilizando o trabalho das mulheres pescadoras e dificultando ainda mais o acesso aos seus direitos básicos de proteção social.
Sem o RGP, não há como acessar benefícios
A problemática do Registro Geral da Pesca (RGP) também foi um dos pontos centrais denunciados no Tribunal Popular das Mulheres das Águas. A pescadora Cícera Batista, de Rio Formoso, litoral sul de Pernambuco, destacou que a emissão e a manutenção do RGP, essencial para a comprovação da atividade pesqueira e para o acesso a direitos previdenciários e programas sociais, continuam gravemente comprometidas. "Sem o nosso RGP, ficamos sem ter como acessar benefícios, sem participar de programas e até mesmo sem como provar que somos pescadoras", afirmou. Segundo ela, o sistema Brasil Pesca, lançado em setembro de 2023, enfrenta falhas constantes, com longos períodos de inatividade por manutenção. "Já passamos mais de três meses com o sistema parado. É muito sério, porque o RGP é nossa porta de entrada para tudo", denunciou.
As mulheres exigiram soluções imediatas do Ministério da Pesca, cobrando o funcionamento regular do sistema.
"Não estamos pedindo favor. Exigimos que o governo cumpra sua obrigação de garantir nossos registros", afirmou Cícera.
O Tribunal observou que os bloqueios históricos no acesso ao RGP representam mais que um problema técnico: são uma forma simbólica de negar a identidade das pescadoras artesanais, desconsiderando seus territórios, seus modos de vida e seu trabalho. Desde 2013, tentativas de novos sistemas têm falhado em garantir o direito básico ao registro, intensificando a precarização e a invisibilidade das mulheres das águas.
Conflitos nos territórios - ameaça de morte e perseguição
Os conflitos nos territórios tradicionais pesqueiros foram denunciados com força durante o Tribunal Popular das Mulheres das Águas. Em Maracaípe, litoral sul de Pernambuco, as mulheres relataram um cenário de profunda violação de direitos, onde 80% do território foi apropriado por um fazendeiro, com anuência de órgãos públicos e parlamentares. Um muro de contenção construído na praia impede o acesso das pescadoras aos seus locais de trabalho. "Esse muro nos impede de atravessar. Perdemos nosso território, nossa pesca, nossa saúde mental", denunciaram. As lideranças locais vivem sob ameaça de morte e perseguição, mesmo estando amparadas por medidas protetivas. "A presença constante de capangas intimida, vigia e adoece nossas famílias", relataram. As mulheres apontaram o racismo ambiental e a violência como dimensões desse conflito.
No sertão pernambucano, outra ameaça se impõe sobre os territórios: a expansão de projetos de energia eólica e a iminente instalação de uma usina nuclear. Apesar de apresentados como empreendimentos "de energia limpa", os relatos das comunidades apontam para outra realidade.
"Não é energia limpa quando destrói nossas terras, divide nossos quintais, expulsa nossos animais e traz doenças," disseram. As torres eólicas, além do impacto ambiental, geram problemas de saúde devido ao barulho constante, afetando diretamente a qualidade de vida das famílias ribeirinhas. "Essa energia não vai beneficiar a gente. Só vai deixar os impactos para os pobres das comunidades tradicionais," afirmaram.
Outro projeto denunciado foi o do Porto Flutuante da Tabulog, previsto para ser instalado em frente ao município de Pitimbu, na Paraíba, com impactos diretos sobre pescadoras e pescadores de Goiana e da Ilha de Itamaracá. A construção ameaça áreas essenciais para a pesca artesanal, especialmente para a captura da lagosta. "Querem privatizar o mar e impedir nossa pesca. Estamos aqui para resistir, porque não aceitamos perder nossas áreas de trabalho," disseram em plenária. Além disso, a ameaça de novos desastres ambientais, como o crime de petróleo de 2019 — ainda não reparado —, preocupa as comunidades. A expansão do Porto de Suape e a preparação para a exploração de minérios também foram citadas como fatores de expulsão e intimidação. "A escravidão não acabou. Ela mudou de forma, mas continua," desabafaram.
Sentença exige reparação das violações e reconhecimento das mulheres das águas
O Tribunal Popular das Mulheres das Águas de Pernambuco reconheceu que o Estado brasileiro vem violando sistematicamente os direitos das pescadoras artesanais nas áreas da saúde, da previdência social, do acesso ao Registro Geral da Pesca (RGP) e da proteção territorial. Foi constatada a falta de políticas públicas específicas para tratar as doenças ocupacionais das pescadoras, a prática de perícias vexatórias e robotizadas que negam benefícios previdenciários, a instabilidade dos sistemas de registro que impedem a regularização profissional e o avanço de grandes empreendimentos sobre os territórios sem consulta livre, prévia e informada às comunidades tradicionais.
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Como determinação política e ética, o Tribunal exigiu a implementação de políticas públicas de saúde específicas, a revisão do atendimento previdenciário com respeito à dignidade humana, a regularização imediata do sistema Brasil Pesca e a paralisação dos empreendimentos que impactam as comunidades sem diálogo e sem reparação dos danos causados.
O Tribunal Popular das Mulheres das Águas de Pernambuco reafirmou a gravidade dos conflitos denunciados no último Relatório de Conflitos Socioambientais lançado pelo CPP, em 1º de abril deste ano, evidenciando que as violações de direitos enfrentadas pelas mulheres pescadoras são estruturais, racistas, sexistas e xenofóbicas. Esta iniciativa recoloca o povo no lugar que lhe é de direito: no centro das decisões sobre suas vidas e territórios. Com sua sentença simbólica, o Tribunal não apenas denuncia o Estado brasileiro por sua ação e omissão, mas também reivindica políticas públicas eficazes, justiça social e o reconhecimento das mulheres das águas como guardiãs dos territórios, dos saberes e da esperança. Por justiça pelas águas e pelos corpos-territórios das mulheres pescadoras, a luta segue viva e em marcha.
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