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MPF pede anulação de licenças de usina de hidrogênio verde no Delta do Parnaíba após articulação de comunidades tradicionais e organizações sociais

Empreendimento ameaça unidades de conservação federais e modos de vida tradicionais; ação judicial é resultado de denúncias feitas por diversas entidades como o CPP regional Ceará e Piauí

08-07-2025
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Texto: Henrique Cavalheiro - assessoria de comunicação do CPP | Foto destaque: Enrico Marone - Foto 2: Enrico Marone - Foto 3: Chico Rasta - Foto 4: Chico Rasta

O Ministério Público Federal (MPF) ingressou com Ação Civil Pública contra o Estado do Piauí e a empresa Solatio H2V, responsável pelo projeto da maior usina de hidrogênio verde do mundo, planejada para o município de Parnaíba. A iniciativa é resultado da articulação de diversas organizações da sociedade civil e comunidades tradicionais, entre elas o Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP), regional Ceará e Piauí, que subscreveu representações ao MPF denunciando irregularidades no licenciamento do empreendimento e os riscos para o Delta do Parnaíba.

O MPF identificou ao menos oito irregularidades graves no processo de licenciamento ambiental, entre elas: fracionamento indevido do licenciamento, ausência de estudos técnicos consistentes, omissão na consulta prévia às comunidades tradicionais e uso indevido da competência do órgão estadual. A ação judicial requer a anulação imediata das licenças prévia e de instalação, sob pena de multa diária de até R$ 1 milhão.

O que é hidrogênio verde?

O chamado hidrogênio verde é um tipo de combustível produzido a partir da separação das moléculas de hidrogênio da água (H₂O), por meio de um processo eletroquímico chamado eletrólise. Para ser considerado "verde", a energia utilizada nessa separação deve vir de fontes renováveis, como a solar ou a eólica. Apesar de ser promovido como alternativa limpa para a descarbonização da economia, sua produção em larga escala demanda grandes volumes de água e energia, gerando impactos ambientais significativos, especialmente quando planejada sem a devida avaliação técnica e social.

Impactos para a pesca artesanal

No caso do empreendimento em Parnaíba, o MPF aponta que o projeto coloca em risco a Reserva Extrativista Marinha Delta do Parnaíba (RESEX Delta) e a Área de Proteção Ambiental (APA) do Delta do Parnaíba, ambas unidades de conservação federais que protegem ecossistemas sensíveis e os modos de vida das comunidades que vivem da pesca e do extrativismo. O plano de manejo da APA, inclusive, veda grandes empreendimentos nas áreas de uso comunitário, o que torna ainda mais grave a ausência de consulta ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgão gestor da unidade.

Além disso, a ação denuncia que não houve consulta prévia, livre e informada às comunidades tradicionais, incluindo as pesqueiras, conforme estabelece a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. Marisqueiras, pescadores e pescadoras artesanais, catadores de caranguejo e extrativistas não foram ouvidos em nenhuma fase do processo.

A usina também dependeria da captação e do descarte de grandes volumes de água do rio Parnaíba, bem da União que abastece populações humanas e sustenta a biodiversidade da região. Entretanto, a outorga de uso da água, que deveria ser concedida pela Agência Nacional de Águas (ANA), não foi sequer requerida antes da emissão das licenças.

O agente de pastoral Luciano Galeno, do CPP Ceará e Piauí, reforça a gravidade dos impactos para quem vive da pesca e do extrativismo na região. “Para as comunidades pesqueiras, a grande situação são os riscos ao Delta do Parnaíba, ao sustento, à vida das comunidades”, afirma. Segundo ele, o rio Parnaíba já sofre com períodos cada vez mais secos e com a salinização da água, agravados pelas mudanças climáticas. “Atualmente não tem água de qualidade nem para os moradores da região do delta, imagine se esse empreendimento se instala consumindo essa quantidade de água por dia”, alerta. Luciano destaca ainda os perigos do despejo de rejeitos no rio e os riscos associados ao uso da amônia, substância tóxica presente no processo produtivo.

“Isso pode causar grandes complicações para quem vive da pesca, da cata do caranguejo e marisco, são grandes complicações possíveis para as comunidades pesqueiras, mas para a população em geral também”, pondera Galeno.

Licenciamento ambiental irregular e tentativa de burlar a legislação

De acordo com o MPF, a empresa responsável solicitou licença apenas para parte da operação do projeto, fracionando o licenciamento ambiental com o objetivo de burlar exigências legais. O correto, segundo a Resolução Consema nº 52/2023, seria a avaliação conjunta de todas as etapas do empreendimento: produção, transporte e armazenamento do hidrogênio e da amônia.

O projeto também não possui ligação aprovada ao Sistema Interligado Nacional, o que coloca em dúvida sua viabilidade técnica e revela a tentativa de avançar sem planejamento adequado.

Outro ponto denunciado pelo MPF foi a realização de audiência pública sem garantir ampla participação social, com prazo reduzido e sem a devida divulgação oficial, em desacordo com as exigências da legislação ambiental.

Atuação comunitária e articulação do CPP

A ação do MPF é resultado direto da mobilização e denúncia de organizações comunitárias e socioambientais. Além do CPP Ceará e Piauí, também assinam as representações o Grupo de Trabalho sobre Impactos das Energias Renováveis (GETIER-PI), Rede Ambiental do Piauí (REAPI), Colônia de Pescadores de Ilha Grande, Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais do Piauí, Coletivo Antônia Flor e Filhas do Sol, entre outras entidades e associações locais de marisqueiras e fileteiras.

Luciano Galeno, agente de pastoral do CPP CE/PI, também ressalta a expectativa em relação aos desdobramentos da ação judicial. “Atualmente, o Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras aguarda que o juiz aceite, acolha a argumentação do MPF, até porque foram identificadas oito irregularidades graves no processo”, salienta. Segundo ele, há a expectativa de que a liminar em caráter de urgência “saia essa semana agora”, e que, em caso de novo licenciamento, o processo seja conduzido pelo IBAMA. Luciano reforça a importância da participação das unidades de conservação e da consulta prévia às comunidades:

“que a consulta livre e prévia informada, de fato, seja primordial, seja critério, de fato, básico, essencial, como o MPF colocou”. Para o CPP, “a gente quer que seja refeito o processo, seguindo tudo que o MPF pede de considerações ali na ação civil pública”, conclui Galeno.

O CPP segue acompanhando o caso, reafirmando sua missão de defesa dos territórios pesqueiros e do direito das comunidades de serem ouvidas nas decisões que afetam sua vida, seu sustento e sua relação com a natureza.

Licenciamento ambiental deve ser fortalecido, não enfraquecido pelo Estado

O caso da usina de hidrogênio verde em Parnaíba expõe de forma contundente as tentativas de burlar o procedimento legal vigente por meio do fracionamento do licenciamento, da exclusão deliberada de órgãos federais competentes e da negação do direito à consulta às comunidades tradicionais. Situações como essa evidenciam os riscos concretos que o Brasil corre caso o Congresso Nacional aprove o Projeto de Lei 2.159/2021, o chamado PL da Devastação, que propõe flexibilizações no processo de licenciamento ambiental. Em vez de enfraquecer esse instrumento fundamental de controle e proteção, é urgente que o Estado brasileiro reforce o licenciamento como um processo técnico, legítimo e participativo, capaz de garantir o equilíbrio entre desenvolvimento e justiça socioambiental. A ação do MPF demonstra que o licenciamento ambiental robusto é não apenas necessário, mas vital para a preservação dos territórios e modos de vida das comunidades tradicionais.

Linha de ação: