Pescadores, quilombolas, lideranças e organizações se reúnem para debater os riscos da exploração de sal-gema nos territórios tradicionais, denunciando ameaças à água, à cultura e à vida das comunidades
Texto e fotos: Henrique Cavalheiro - Assessoria de Comunicação do CPP
As porteiras do território quilombola de Porto Grande, em Conceição da Barra (ES), abriram logo cedo na manhã do sábado (17). Foi ali, às margens do rio Cricaré e cercado por matas e manguezal que ainda resistem, que pescadores e pescadoras artesanais e quilombolas vindos de diversas comunidades da região, se reuniram para um momento de escuta, partilha e mobilização para o seminário “Pesca Artesanal e os Impactos da Mineração do Sal-Gema”.
Entre bancos simples, a sombra das árvores e o altar de São Benedito, protetor da comunidade, o encontro foi marcado por falas firmes e olhares atentos. O evento foi promovido pelo Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP) regional Minas Gerais e Espírito Santo, com apoio da FASE/ES. Contou com a presença também de agentes da Comissão Pastoral da Terra (CPT), de militantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), do Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), da Rede Cidadania, e diversos representantes de organizações parceiras, além da deputada estadual Iriny Lopes (PT-ES), que reforçou seu compromisso com a defesa dos territórios tradicionais.
O que é o sal-gema e por que preocupa?
O sal-gema é um tipo de sal que fica preso bem fundo no chão, em camadas formadas há milhões de anos. Ele é muito usado por indústrias para fazer produtos como cloro, soda cáustica, plástico e até no tratamento da água. Para tirar esse sal do subsolo, as empresas costumam jogar água com muita pressão dentro da terra, para que o sal se dissolva. Depois, essa água salgada é puxada de volta para cima. O problema é que esse jeito de extrair o sal pode causar sérios estragos: pode contaminar a água que o povo bebe, fazer o chão afundar, como aconteceu em Maceió (AL), após a empresa Braskem explorar por décadas o sal-gema do subsolo da local, ou rachar, e ainda prejudicar os rios, os mangues e o sustento de quem vive da pesca e da agricultura nas comunidades.
Por que o seminário aconteceu no Espírito Santo?
A escolha do local do seminário não foi por acaso. Porto Grande está inserida numa região que abriga a maior jazida de sal-gema da América Latina, com mais de 2 bilhões de toneladas do mineral. Segundo matéria do G1, publicada em dezembro de 2023, a jazida foi descoberta em 2005 e registrada pelo Serviço Geológico do Brasil. Apesar de ter sido leiloada em 2019, nunca chegou a ser explorada, mas segue no radar de grandes empresas do setor minerário. O temor das comunidades é que o avanço dessa atividade traga consequências irreversíveis para os modos de vida tradicionais, para a biodiversidade dos rios e para o futuro da pesca artesanal na região.
Riscos da mineração de sal-gema
A geógrafa Simone Ferreira, professora da Universidade Federal de Estudos Culturais (ES), trouxe ao seminário uma explicação detalhada sobre o sal-gema e sua formação. Segundo ela, trata-se de uma jazida mineral formada há muitos anos por meio de uma sedimentação lenta, que acumulou grandes quantidades de sal em camadas subterrâneas. “O sal-gema aqui na nossa região está antes da camada do pré-sal”, explicou, lembrando que foi durante as pesquisas da Petrobras nos anos 1970, em busca de petróleo a cerca de 8 mil metros de profundidade, que se identificou a presença dessa substância. O sal-gema, acrescentou, é amplamente utilizado pela indústria na produção de soda cáustica, branqueamento de celulose e fabricação de canos de PVC.
Simone alertou para os riscos que a mineração de sal-gema pode trazer às comunidades do entorno. Ela explicou que o processo de extração envolve a injeção de água com alta pressão no subsolo para dissolver a rocha de sal, formando uma salmoura que é retirada e depois processada. “Você vai tirando aquele sal e não vai pondo nada no lugar”, afirmou, citando o exemplo da Braskem e os impactos em Maceió. Um dos problemas, segundo ela, é que o lençol freático pode ocupar os buracos deixados pela extração, formando grandes lagoas salinas. “Essa salinidade pode prejudicar a agricultura local, a vegetação nativa e até a pele das pessoas, tornando o ambiente muito árido.” A professora reforçou que os efeitos não se limitam ao local do poço, podendo atingir outras comunidades por meio dos rejeitos da mineração:
“Toda mineração produz muito rejeito, e em algum lugar ele vai ser depositado”, concluiu Ferreira.
Território já sofre com escassez de água e contaminação, alerta FASE
Daniela Meirelles, da FASE Espírito Santo, destacou que o avanço da mineração de sal-gema ameaça um território já marcado por diversos outros impactos de grandes empreendimentos. Segundo ela, a região abriga muitas comunidades tradicionais — de pesca artesanal, quilombolas e camponesas — que já vêm enfrentando os efeitos da monocultura do eucalipto, da indústria da celulose (como a da Suzano), da Petrobras e de crimes ambientais como o da Samarco, Vale e BHP. “As águas desses territórios estão contaminadas, estão escassas”, denunciou Daniela, lembrando que o local já é considerado uma área semiárida.
A preocupação se intensifica diante da demanda hídrica que a extração de sal-gema pode trazer. Daniela alertou que o projeto exigirá grande volume de água para o processo de extração, agravando a crise hídrica vivida pelas comunidades locais, que já enfrentam dificuldades para garantir o abastecimento de suas casas e atividades de subsistência. “A gente precisa garantir os direitos das comunidades tradicionais, garantir a terra e o alimento — e não a sal-gema”, afirmou. Ela também criticou a falta de transparência e a forma impositiva com que esses empreendimentos chegam aos territórios, defendendo que momentos como o seminário são fundamentais para articular resistências e fortalecer uma mobilização crítica.
“O planeta não precisa de sal-gema. Nesse momento de emergência climática, o que a gente precisa é recompor as matas, os rios, as nascentes e proteger a vida”, finalizou Meirelles.
Vozes do território: união, memória e luta contra a ameaça da mineração
Moradora da comunidade que acolheu o seminário, Antônia dos Santos Guilherme Luis celebrou o encontro como um momento de orientação e fortalecimento coletivo. “O seminário que teve aqui hoje foi para trazer boas notícias pra gente, orientar nós sobre o que possa acontecer na nossa comunidade. E eu fiquei muito feliz também de eles tocarem no assunto do sal-gema aqui, porque a nossa comunidade é meio que atacada por isso”, afirmou. Segundo ela, a união entre os moradores é um valor fundamental do território. “Aqui só mora família, não tem estranho, é só nós mesmos. Sempre fomos unidos. A gente preserva a beira do rio”, contou Antônia. Pensando no futuro das próximas gerações, reforçou o papel das comunidades tradicionais na defesa do meio ambiente.
“A natureza aqui, pra nós, é muito importante. A gente está aqui pra reunir com os vizinhos, dar as mãos, conseguir alguns planos pro nosso futuro, deixar coisas boas pros nossos filhos, netos e bisnetos. Estamos muito felizes por essa reunião, que trouxe muitas orientações pra gente”, celebrou a anfitriã.
Nascido e criado na comunidade de Porto Grande, Euclides dos Santos Guilherme, mestre de Reis do Boi, manifestou sua gratidão pela realização do seminário e reforçou a importância da união contra a ameaça da mineração de sal-gema na região. “Eu tenho 50 anos de idade, nasci aqui mesmo no Porto Grande, e essa caminhada que estamos fazendo é para combater, para que não furem poços e não tirem essa beleza, essa paisagem linda que nós temos aqui”, afirmou. Ele ressaltou que a presença das organizações e apoiadores fortalece a resistência das comunidades ribeirinhas. “Vai ser uma destruição muito grande pra nós que vivemos da pesca, da cultura, e uma falta de respeito com as comunidades humildes. A gente está se juntando a vocês pra brigar, pra que esse Sal-gema não avance aqui no nosso município”, ponderou o mestre. Em tom emocionado, Euclides fez um apelo por apoio institucional e solidariedade. “Peço à UFES, ao governo, à deputada, a todos vocês: nos ajudem para que isso não vá à frente, para que não prejudique nossos filhos e netos. Estou muito grato e feliz com a presença de vocês aqui”, disse o pescador.
"O capital não perdoa"
Presente no seminário, a deputada estadual Iriny Lopes (PT-ES) fez uma fala firme em defesa das comunidades tradicionais e contra os impactos históricos causados por grandes empreendimentos no Espírito Santo. Ao relembrar a instalação da antiga Aracruz Celulose, denunciou a destruição provocada por promessas de progresso que nunca se concretizaram. “Olha o que dilapidou: matou pessoas de todo jeito, matou de fome, de desespero, porque não tinha trabalho, não tinha nada. Adoeceu a população mentalmente, pela poluição”, declarou.
Para a deputada, o discurso que hoje acompanha a exploração de sal-gema repete a mesma lógica de exploração que privilegia os lucros de poucos em detrimento da vida local. “Por que abrir mão das suas terras, das suas famílias, da sua cultura, para privilegiar os lucros de meia dúzia de investidores?”, questionou. Iriny alertou que, ao fim da instalação da infraestrutura, restam às comunidades apenas os prejuízos: “O capital não perdoa. Se isso vai depredar o meio ambiente ou acabar com a vida humana, eles em nome do lucro não estão nem aí”. A deputada reforçou que, assim como no passado, a resistência segue viva, unindo quilombolas, pescadores e pequenos agricultores contra novos ciclos de destruição.
Ação pastoral diante da ameaça da mineração
A agente pastoral do CPP-MG/ES, Zena Pinto destacou a importância do seminário como parte de um processo de escuta, mobilização e articulação das comunidades afetadas pela ameaça da mineração de sal-gema. “Esse trabalho que a gente tem desenvolvido aqui na comunidade é desde o ano passado. Estamos vindo, conversando, escutando os pescadores e pescadoras para ver se seria possível organizar esse seminário aqui hoje”, explicou. Segundo ela, o encontro conseguiu reunir organizações sociais, a Universidade e a deputada estadual Iriny Lopes para debater coletivamente os próximos passos diante do avanço da exploração mineral em Conceição da Barra. “A gente não pode deixar que essas indústrias capitalistas venham para o território dos pescadores e dos quilombolas para destruir o território. Porque destrói não só o território, mas também a cultura, a culinária e tudo aquilo que eles já conquistaram”, alertou Zena. Zena reforçou que o objetivo agora é formar uma comissão com representantes locais e aliados para definir estratégias conjuntas de resistência.